Quarta passada (25), ritualisticamente, acendia meu primeiro cigarro após o almoço enquanto ligava o computador. Geralmente não gasto mais de vinte minutos me perdendo nas redundâncias que as redes sociais me proporcionam antes de voltar às responsabilidades do mundo real. Dessa vez foi diferente. Aquele Marlboro que estava entre os meus dedos acumulava uma torre de cinzas, pois ao abrir o twitter e me deparar com os depoimentos de apoio de um dos meus maiores ídolos ao Donald Trump, e o consequente alarde público dos usuários, estava paralisado. Kanye me fazia desperdiçar o vício, me impossibilitando de fumar ou bater as cinzas pela janela.
Antes de desenvolver a reflexão que esse acontecimento me estimulou a escrever, gostaria de esclarecer uma possível falha de comunicação: eu não compactuo com o que ele defende. Inclusive, compartilho do pensamento que a Amanda Cavalcanti pontuou em sua recente matéria para a VICE, sobre gostar ou não de artistas dos quais discordamos em algo. Aqui está o link.
É comum atribuir o Hip-Hop à ideologia de esquerda. Ainda bem, e por sorte, a representação dela no cenário continua sendo majoritária. Ou é isso que eu pensava. Com a popularização do Trap, trazendo a romantização das drogas, do dinheiro, e consequentemente a ilusão da ascensão social econômica que esse discurso carrega, não se pode mais negligenciar a influência da direita política nos artistas do gênero. Ainda mais por essa vertente se negar como politizada, parece um impacto inofensivo. Porém, a questão não é somente os novos artistas que pregam o individualismo e as ideologias capitalistas em músicas divertidas com intenção de entretenimento. Grandes nomes do Rap de mensagem vem propagando essas ideias durante um bom tempo.
No caso de combater as ideias conservadoras no Hip-Hop, eu não me preocupava com o Kanye West. Quem acompanha o artista a mais tempo já sabe que um pouco antes do lançamento do The Life Of Pablo essa polêmica já havia vindo à tona. Pelo que vemos do seu comportamento, era bem possível que ele nem estivesse de acordo com as políticas em si do atual presidente dos Estados Unidos. Não é novidade o rapper usar da controvérsia para divulgar seus álbuns. Como ele mesmo disse no twitter, 'Eu não fiz pesquisas suficientes para me chamar de conservador ou ser chamado de um. Eu só estou me recusando a ser escravizado pelo pensamento monolítico.' Na internet, há quem diga que ele está endoidando, há quem diga que ele é doido, mas são afirmações irrelevantes para entender a perigo do seu discurso. Taxá-lo de maluco só o exclui de um contexto que precisa ser debatido.
Contudo, recentemente em uma entrevista para a TMZ, o artista disse que a escravidão nos Estados Unidos havia sido uma opção. Mesmo que ele estivesse fazendo um discurso sobre autoestima e empoderamento negro, como seus defensores apontaram, não é justificativa para banalizar um período de exploração e genocídio de um povo. É triste nos impressionarmos com esse tipo de depoimento agora. Não porque não são ofensivos. Mas porque essa influência não é de agora, e talvez deveríamos ter começado a combatê-la na música antes que chegássemos a esse ponto.
No Brasil, devido à nossa realidade, um mc que apoia o Bolsonaro sofre forte repulsa da cena, e com razão. Contudo, no cenário norte americano, os rappers com discurso explicitamente, ou até implicitamente, republicano, não sofrem o mesmo linchamento. Provavelmente pela enraizada difusão do termo ‘free speech’. Mas até onde a liberdade de expressão não é utilizada pelas classes privilegiadas para justificar opressão, não é? Esses poucos artistas que se beneficiaram da meritocracia não percebem que isso não é aplicável para o restante da sociedade.
Todavia, existe um contexto para tal. Em cidades sucateadas como Detroit e Chicago, a presença de mc’s de direita é bem mais perceptível. Eu entendo e concordo com a problemática de se ter negros apoiando políticos racistas, assim como LGBTQ+'s apoiando homofóbicos, e por aí vai. Contudo, eles não perdem sua identidade por isso. Continuam negros. Continuam minoria. Assim como Chance The Rapper escreveu em defesa de seu companheiro, embora esclarecendo que não concordava com as opiniões do Kanye: ‘Negros não precisam ser democratas’.
Para a percepção de um brasileiro, o absurdo de um rapper fascista ou de direita é bem claro. Mas para a percepção de um norte americano que, independente de belos discursos socialmente inclusivos dos seus governantes, não viu nada melhorando na sua quebrada, talvez não. Essas pessoas não viram o poder institucional de seus prefeitos/governadores democratas cumprindo suas promessas. E aí que entra o problema.
Mesmo que o discurso liberal econômico de investimento e empoderamento financeiro não seja abrangente para a sociedade como um todo, ele entra nos versos e depoimentos de artistas de Hip-Hop em um ponto que a esquerda vem falhando em cobrir. O Rap nasceu do movimento social e dos ideais marginais, e a partir de diferentes óticas, disseca e critica a sociedade. No entanto, é raro se deparar com rimas que deem soluções palpáveis para mudança. Assim, infelizmente, a ilusão de direita (ou liberal econômica, ou republicana, independente da vertente específica) perpetua no cenário como uma alternativa tanto para o artista quanto para o público diante da frustração do discurso da esquerda.
É preocupante que estejamos muito ocupados em problematizar os tweets do Kanye, enquanto seu discurso há tempos ascende nas linhas dos raps, se intensificando quase que silenciosamente. Eu não me lembro de ninguém se mobilizar sobre Story of O.J., do Jay-Z, quando foi lançada ano passado. Pelo contrário, com um certificado de platina em menos de uma semana de lançamento, ela é considerada um clássico ainda que recém-nascida. Independente de ser um hino neoliberal.
Retirado do site Genius.
‘[Interlúdio]
Você quer saber o que é mais importante do que atirar dinheiro em um clube de strip? Crédito
Você já se perguntou por que os judeus possuem toda as propriedades na América? É assim que eles fizeram isso
[Verso 2]
Liberdade financeira minha única esperança
Foda-se, viver rico e morrer quebrado
Comprei uma obra de arte por 1 milhão
2 anos depois, essa merda valia 2 milhões
Poucos anos depois, essa merda valia 8 milhões
Eu não posso esperar para dar essa merda aos meus filhos
Todos pensam que é coisa burguês, eu tipo, está bem
Mas estou tentando lhe dar um milhão de dólares em músicas por US$ 9,99 (TIDAL)
Eu virei esse 2 para um 4, 4 para um 8
Tornei minha vida em uma boa semana de lançamento
Todos vocês continuam pegando adiantamentos, hein?
Eu e meus manos nos arriscando de verdade, uh
Vocês no Instagram segurando dinheiro no ouvido
Há uma desconexão, nós não chamamos a grana assim aqui’
(traduzido pelo portal Rap+)
Se estamos tentando combater esses ideais nocivos na música, o melhor caminho é discutir os posicionamentos implícitos que com certeza, influem muito mais na vida cotidiana dos ouvintes. Alguém começou a gostar do Donald Trump depois de quarta-feira? Por mais fã que alguém possa ser, eu duvido. Contudo, alguém agiu de acordo com Story of O.J. e colocou em prática as estratégias de liberdade financeira difundidas pelo Jay-Z, mesmo sendo uma realidade meritocrática que só engloba pouquíssimos indivíduos? Provavelmente.
Uma alternativa ineficiente é melhor que alternativa nenhuma?
Passando por 50 cent, LL Cool J, Lil B, não parece que a direita no Hip-Hop é uma grande preocupação. Estes artistas nunca foram pressionados por esse posicionamento. Entretanto, com a ascensão da alt-right e neonazistas marchando livremente pelas ruas, talvez seja importante resgatar um pouco da essência coletivista da origem do Hip-Hop. E se temos artistas apoiando ideais como esses, provavelmente se deve por termos deixado isso tudo passar. Recentemente, até mesmo o discurso pró-armamento, tão combatido no movimento Black Lives Matter, vem crescendo exponencialmente. O próprio Kiiler Mike, membro do Run The Jewels, deu uma entrevista reforçando seu apoio ao porte de armas.
Musicalmente, o gênero já não carrega o coletivismo de antes. O individualismo do século XXI abriu espaço para que a oposição à normatividade e aos costumes nocivos do capitalismo fosse gradualmente cedendo. Qual foi o último trampo que você escutou que mudou sua forma de se portar na sociedade?
O conservadorismo não cresce apenas politicamente na atualidade. Em esferas culturais, incluindo a musical, também se percebe a ascensão dessa antiquada perspectiva. E o Rap vem contribuindo com isso, participando ativamente na reafirmação dela para a sociedade.
Enfim, a esquerda, sem perceber, perdeu seu gênero musical mais ativo.
Ah, e sobre o Kanye. Estou torcendo para que toda essa polêmica seja uma estratégia de marketing, e que no seu álbum previsto para esse ano, ele caia em cima do Trump em suas músicas. Já pensou? À essa altura, não duvido em nada do Sr. West.
Texto por Rafael Mafra.
Revisado pelo Angelo Dias.
Kanye West e a direita no Hip-Hop
Reviewed by Rafael Mafra
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03 maio
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