Channel Orange e o R&B através das lentes do Frank Ocean


2012 foi um ano deprimente para o mainstream em geral. Se eu pudesse reviver os hits da época e tomasse um shot de tequila a cada vez que ‘Look At Me Now’ do Chris Brown tocasse, eu entraria em coma alcoólico e provavelmente tentaria me matar antes da música acabar. Por sorte e mesmo nós não sendo merecedores de tal graciosidade, em julho do mesmo ano, Frank Ocean — nascido como Christopher Edwin Breaux — lançou seu álbum de estreia intitulado ‘Channel Orange’ através de Def Jam Recordings.

Bandana vermelha e branca, integrante do coletivo californiano Odd Future, usuário ativo do Tumblr, um catálogo que ia de músicas colaborativas com o Kanye West até composições para Beyoncé, e com sua primeira mixtape circulando em todos os cantos da internet, Frank Ocean não era nenhum outcast da indústria entre 2011 e 2012, mas a relevância de seu primeiro álbum ‘Channel Orange’ — que inclusive ganhou o Grammy de Best Urban Contemporary Album em 2013 — vai além de prêmios e sucesso comercial. 

Durante a época do lançamento de ‘Channel Orange’ o R&B estava lutando com todas suas forças para não seguir o fluxo do hip-hop que mais crescia na época e que substituiu o Crunk: o trap.

Admitindo ou não, o hip-hop e o R&B são amigos de longa data e um puxa o outro para suas novidades. Essa fusão até ganhou um nome próprio na internet, quando em 2015 Bryson Tiller surgiu com o termo ‘trapsoul’ e não demorou muito até beatmakers começarem a usar o nome como tag de type beats para instrumentais que misturavam R&B e trap. 

Um exemplo mais amplo da dificuldade do gênero em encontrar seu caminho é a lista do final de 2012 da Billboard, onde os maiores hits de R&B foram algumas músicas melosas do Miguel, qualquer merda clichê que o Chris Brown lançou no ano, ‘Girl on Fire’ da Alicia Keys que encheu o saco de todo mundo tocando na rádio e na Riachuelo a cada vinte minutos e ‘Climax’, uma das milhares de músicas chatas com muitos falsetes irritantes do Usher.


‘Channel Orange’ terminou de trilhar o caminho novo e experimental que Frank havia começado com a brilhante mixtape ‘Nostalgia, Ultra’ um ano antes. O R&B precisava ser revitalizado e revivido de acordo com o mundo e público atual, e bom, as músicas com metáforas ruins sobre sexo do Usher ou a tentativa do Miguel de ser cool já beirando os 30 não estava funcionando. Na verdade esses projetos estavam atrelados demais a ideia do ‘baby making songs’, aquelas baladas românticas da década de 90 que provavelmente a maioria de nós fomos concebidos ao som delas. O toque de Ocean no gênero foi uma mensagem esmurrada do tipo “ei, o R&B não precisa ser um gênero de tiazona divorciada que já leu todos os livros do Nicholas Sparks, também podemos fazer sons honestos, sexuais, melancólicos e relatar experiências com drogas sem perder de vista o legado de artistas que nos antecederam!”. Ou alguma coisa assim.

De volta ao álbum: ‘Orange’ começa com ‘Start’, uma rápida intro com barulhos de estéreo, como se alguém tivesse acabado de ligar uma TV e conta com uma breve sample da música tema do Street Fighter.

O single ‘Thinkin Bout You’ surge descrevendo precisamente os locais onde se passa a história da track: “A tornado flew around my room before you came / Excuse the mess it made, it usually doesn't rain in / Southern California, much like Arizona.” Esse formato de storytelling em explicitar lugares e cidades criando um cenário em volta da música é usado por Frank durante todo o álbum, e talvez seja uma das razões pela qual conseguimos “visualizar” todas as faixas e interludes como se estivéssemos vendo televisão, lendo um livro ou até mesmo participando da narrativa. 


‘Fertilizer’ soa como um jingle de comercial, como se agora realmente estivéssemos trocando de canal na TV. ‘Sierra Leone’ se estabelece logo em seguida, moldando uma sensação de proximidade e vulnerabilidade através do tipo de detalhes que geralmente não gostamos de contar para os outros: “We're behaving like teenagers / (Making less than minimum wage) / Still inside our parents' homes / (No, I don't live in Denver) / No, I don't live in Denver / (I grew up in Sierra Leone).”

Produzido por Pharrell Williams, ‘Sweet Life’ é uma sátira ao dinheiro, em especial as pessoas que o possuem em grande quantidade. Logo em seguida se inicia o interlude ‘Not Just Money’, acentuando a ideia da faixa anterior. O barulho de seta funcionando transmite agora o cenário de estarmos dentro de um carro enquanto chove: “It's not just money / It's happiness / It's the difference between happy, being happy and sad / It's the difference between having a home and living on the streets / That's what it is, it's not just money.” 

O dinheiro é um tema constante durante todo o álbum e aparece mais uma vez na faixa seguinte, ‘Super Rich Kids’, com participação de Earl Sweatshirt. A track explora o sentimento de solidão e a falta afeto genuíno que acompanha a classe privilegiada, mas sem perder o sarcasmo de ‘Sweet Life’.



Em ‘Pilot Jones’ qualquer maconheiro desempregado consegue se identificar: você marola a casa inteira, sua mãe reclama dos seus vícios e você mais do que ninguém sabe que tá foda conseguir um emprego. Enfim, a faixa na verdade tem uma atmosfera bem interessante: na intro a voz de Frank sobressai sobre sutis barulhos de um avião decolando que vão aparecer novamente ao final da música com muito mais nitidez. Essa ‘ambientação’ complementa as metáforas que Ocean usa sobre as semelhanças entre se apaixonar e ficar drogado: You're the dealer and the stoner with the sweetest kiss I've ever known / I know what I was on, I had a Pilot Jones / She took me high, then she took me home.

‘Crack Rock’ mistura lindamente influências do jazz com R&B enquanto a voz suave de Frank nos distrai do fato de estar cantando sobre pedras de crack, racismo e violência policial: “Crooked cop, dead cop, no good for community / Fuckin' pig get shot, three hundred men will search for me / My brother get popped and don't no one hear the sound." Importante ressaltar que alguns meses antes do lançamento do álbum, Trayvon Martin, um rapaz de 17 anos foi assassinado na Flórida por um voluntário do bairro, levantando questionamentos sobre as mortes violentas de negros nos Estados Unidos e sobre como o sistema judiciário não se importa com as vidas negras (movimento do Black Lives Matter).

‘Pyramids’ é provavelmente a melhor faixa do álbum em termos de lírica e storytelling. Com dez minutos hipnotizantes e uma transição tão smooth que quase passa despercebida, a track aborda como mulheres negras passaram de rainhas do Egito (como a Cleópatra) para meras strippers nos dias atuais, novamente trazendo a tona a temática do dinheiro e do que é preciso fazer para consegui-lo: “I watch you fix your hair / Then put your panties on in the mirror, Cleopatra / Then your lipstick, Cleopatra / Then your six-inch heels, catch her / She’s headed to the pyramid”.


‘Lost’ começa aparentando ser uma mera love song com muito teor sexual, mas a partir do segundo verso conseguimos entender que Frank na verdade está narrando a história de uma mulher que se perde no mundo fantasioso do dinheiro e do tráfico de drogas, interligando a storyline com a track anterior. Ao final da música, “love lost” se repete algumas vezes, entretanto soa mais como “love lust” (em português ‘lust’ significa luxúria). Os ruídos de alguém trocando de canal na televisão aparecem mais uma vez e o belíssimo instrumental de John Mayer em ‘White’ se inicia.

‘Monks’ retrata as experiências de Frank com shows e groupies, comparando a relação de monges e Dalai Lama com o relacionamento que fãs costumam ter com artistas. Essa é a primeira faixa do álbum em que Ocean usa o Órgão de Tubos — instrumento musical muito utilizado em igrejas cristãs na antiguidade — no beat. Com a tracklist cuidadosamente elaborada, ‘Bad Religion’ (“religião ruim” em português) começa logo em seguida. 

Algumas semanas antes do lançamento de ‘Channel Orange’, Frank postou um desabafo no Tumblr admitindo ser bissexual e que seu primeiro amor na verdade foi um homem. ‘Bad Religion’ é uma sessão de terapia — semelhante ao que seu amigo Tyler, The Creator fez no álbum 'Goblin' — de Frank com um motorista de táxi sobre um amor não correspondido. A faixa compara a idolatria da religião (“If it brings me to my knees / It's a bad religion”) com a dor e o desamparo de um sentimento que não é recíproco (“I can never make him love me / Never make him love me”). 

‘Pink Matter’ conta com a participação de Andre 3000 e ao contrário de ‘Lost’ que nos engana brevemente, ‘Pink Matter’ realmente é uma love song com muito teor e metáforas sexuais (aprende aí, Usher). 

‘Forest Gump’ complementa a sonoridade de ‘Bad Religion’ e ‘Monks’, sendo a última faixa do álbum com a presença de um Órgão de Tubos no instrumental. O nome da track é uma referência óbvia ao filme ‘Forest Gump’ de 1994.

‘End’, como diz o nome, é a última faixa do álbum e é um breve interlude. ‘Voodoo’ toca como se estivesse saindo de um rádio e a voz de uma mulher dizendo “I wish you could see what I see” ressoa no fundo. O som de chuva e da porta do carro se abrindo é seguido por passos e barulhos de chaves em alguma fechadura. O interlude termina com o ruído de uma televisão sendo ligada da mesma forma que acontece em ‘Start’. Estamos de volta ao início do ‘Channel Orange’, que na verdade é o destino final dele, deixando a vaga sensação de nostalgia e déjà vu.



Diferente do rap, storytellings contínuos em álbuns nunca foram o forte do R&B. Em 2011 com o lançamento do ‘House of Balloons’ do The Weeknd e no ano seguinte com ‘Orange’, uma nova forma de experimentar narrativas e fundir gêneros começou a aparecer lentamente. Se hoje temos o R&B com muito mais foco no lírico e nas storylines — como vimos no ‘CTRL’ de SZA, por exemplo — é porque como em toda mudança brusca em algum gênero musical, algo que estava preso em um molde teve que ser quebrado. Frank Ocean foi um dos primeiros a destroçar o molde na bicuda.

Desde o ‘Nostalgia, Ultra’ Frank usa carros como cenários de suas experiências pessoais, nos convidando a sentar no banco do passageiro e ouvir tudo que ele tem a dizer. O cenário que as músicas transmitem (uma hora parece que estamos passando canais de TV e na outra ouvindo uma discussão alheia dentro de um carro) somada com as narrativas delas traz a sensação de intimidade, de que mesmo por 55 minutos nós fizemos parte daquilo.

Além de storytellings bem feitos, experimentações lindíssimas e samples que vão desde Mary J. Blige até Jimi Hendrix, ‘Channel Orange’ se destaca pela forma como faz o ouvinte se sentir dentro do próprio álbum. ‘Orange’ começa sampleando a música do Street Fighter e ao longo do projeto os principais temas abordados são o dinheiro, amor, sofrimento e a nostalgia, de certa forma capturando — propositalmente ou não — a passagem que todos nós temos que fazer ao largar a infância e tentar amadurecer enquanto nos adaptamos a realidade do mundo como adultos. Frank termina de desenvolver todo esse processo doloroso em 2016 com o lançamento do ‘Blonde’, em especial nas faixas ‘White Ferrari’ e ‘Ivy’. 

Crescer é uma merda, mas pelo menos temos o consolo de crescer tendo Frank Ocean como parte da soundtrack da nossa vida.