A gente realmente precisa de rappers como a Nicki Minaj



No dia 10 de agosto fomos agraciados com o lançamento do quarto álbum da rapper Nicki Minaj, 'Queen'. Entre aplausos, críticas e fofocas, toda uma aura midiática foi criada sobre o trabalho, o que acabou desviando um pouco a atenção sobre sua importância musical.

Após um mês de seu lançamento, Queen se mostra cada vez mais imponente e necessário para o estágio em que se encontra a cena internacional, principalmente quando se fala de rap. Isso porque estamos em 2018, certo? O que já significa o ano em que Kanye West participou de quatro projetos inovadores que nos deixaram com a sensação incrível de ouvir algo arrebatador, como o Kids See Ghosts – projeto de Ye com Kid Cudi.


O que muita gente esqueceu é que 2018 também foi o ano em que a Jorja Smith lançou seu aclamado álbum de estreia, 'Lost & Found'. Não vi tanta gente comentando sobre o 'Flightmode Vol. 4', da IAMDDBB, ou sobre o 'Keep That Same Energy', da Teyana Taylor, que nem com a produção do Kanye West conseguiu alcançar um hype perto dos outros projetos do cara.


E a lista vai se estendendo. Talvez você não conheça a Young M.A., ou a Queen Key, de Chicago. Já artistas como a Saweetie, devem estar começando a chamar sua atenção. Ela é uma das próximas apostas de sucesso, e já tem um material no mercado, o EP 'High Maintenance'. Se sairmos da zona de conforto e explorar outros países, outros subgêneros do hip hop, e até mesmo as minas na cena perto da nossa casa, vamos achar um monte delas.


Porém, quando falamos de rap feminino, uma expressão inclusive bem taxativa, sempre nos contentamos com as grandes lendas do hip hop. Ms. Lauryn Hill, Lil’ Kim, Eve, Trina, Missy Elliot, Foxy Brown e por aí vai. “Tá, mano, começa a falar do Queen, logo, tô aqui só por isso”. Sim, apesar de citar todas essas artistas, estamos aqui para falar de Nicki Minaj.


Na faixa "Chun-Li", liberada antes do lançamento de 'Queen', há um trecho em que Nicki fala:

"They need rappers like me! 
So they can get on their fucking keyboards!
And make me bad guy, Chun-Li"

Essa line consegue resumir a importância do álbum e de Nicki em diversos aspectos. Começaremos pelo que mais nos interessa: a música. 'Queen' é o melhor trabalho de Nicki Minaj até então. As letras e o tom irônico e divertido com o qual rima, suas principais marcas, confirmam sua autenticidade e apresentam uma evolução incrível nesse álbum. É possível perceber que Nicki está crescendo cada vez mais, sempre entregando um material mais refinado que o antecessor. 


Hoje em dia ficou difícil lançar álbuns longos, o que provocou duas reações: ou você ouviu tudo sem nem perceber que tinham 20 faixas, ou você se irritou com a extensão e saiu pulando algumas delas. O álbum não tem uma completude sonora fechada em um único conceito, mas explora várias sonoridades em um formato espiral.


As diferentes técnicas e estilos que Nicki consegue desenvolver aparecem mais de uma vez ao longo do trabalho. Isso fica mais perceptível com o fim de “Chun Swae”, quando ela diz:

"You're in the middle of Queen right now, thinking
‘I see why she called this shit Queen
This bitch is really the fucking queen’"

Nesse momento é possível perceber que até então tivemos uma amostra de cada sonoridade que Nicki quis trabalhar, e que elas aparecem novamente a partir de “Chun Swae”. Ou seja, antes dessa faixa temos a dançante “Ganja Burn” e logo Nicki começa a adentrar um pouco mais o rap, com "Majesty" e a incrível "Barbie Dreams". Essa música é surreal. 


Que outra artista pode sair por aí ironizando sexualmente grandes nomes do rap em cima de "Just Playing Dreams", do The Notorious B.I.G.? Simplesmente sensacional. É um dos grandes destaques do álbum e consegue externalizar o melhor do humor de Nicki Minaj, além de mostrar um dos flows mais incríveis no final, marcando profundamente a assinatura da rapper. 



Em seguida, temos um feat com Lil Wayne em "Rich Sex" e o maior destaque dessa parte: "Hard White". Nicki deita demais com a alusão ao espelho mágico: 

"Mirror, mirror, who's the fairest?
You the motherfucking fairest, Nicki
What I drop on this watch?
I don't know, about a hundred-fifty"

É em "Hard White" que temos alguns dos melhores versos do álbum, como: "Ayo, just last week I told 'em they run done / Me legacy could never be undone". É a música que mais expressa a necessidade de Nicki reforçar a importância de sua trajetória e da posição que ocupa na música. 


'Queen' segue com “Bed”, que conta com a participação da Ariana Grande e é a faixa mais pop do álbum. “Thought I Knew You” segue um pouco a linha de “Bed”, mas é completamente esquecível. Acho que chegamos em um momento que está ficando insuportável ver o The Weeknd nos feats


Mas quando começa “Run & Hide” nos deparamos com um lado R&B de Nicki, que canta sobre relações e sentimentos de forma sincera, de modo que o astral fica um pouco mais pra baixo. É a música de ouvir na fossa. E ela quebra isso com "Chun Swae", que resgata o espírito do álbum ao lado de Swae Lee, encerrando a primeira parte.


"Chun-Li" inicia o segundo ciclo, reafirmando a técnica de Nicki e mostrando a temática do álbum de forma mais explícita, o que complementa a proposta de "Chun Swae". Nessa faixa, ela narra sobre a denominação de bad guy para a personagem de luta Chun-Li, colocando-se em seu lugar. É uma metáfora para a mídia e outros haters, que vêm atacando Nicki desde o início de sua carreira cobrando todo tipo de parâmetro sobre seu trabalho.  


Em "LLC", a rapper nos prestigia novamente com um estilo de flow mais acelerado, que já tinha aparecido em "Barbie Dreams", mas ela não costumava destacar tanto nos outros trabalhos. Sua marca foi sempre a letra, e por consequência as barras. BARS! Fucking bars! Se você prestigia as técnicas do rap, com certeza ficou feliz com pelo menos uma música desse álbum. "LLC" integra o TOP 5 do álbum ao lado de "Barbie Dreams", "Hard White", "Chun-Li" e "Coco Chanel", justamente as mais focadas no rap.

“Good Form” completa a sequência de forma mais animada e logo começa “Nip Tuck”, uma das faixas mais sentimentais do álbum. Ela lembra “Run & Hide”, e também mostra Nicki cantando suavemente sobre temas mais introspectivos, o que é reforçado pela arrebatadora “Come See About Me”, que vem logo após o interlúdio “2 Lit 2 Late Interlude”. “Sir” chega com a participação de Future, com sonoridade semelhante a “Rich Sex”, tanto pelo feat como pela beat menos acelerada.

Em seguida começam as mais dançantes, que resgatam as raízes de Nicki em Trinidad, onde nasceu. “Miami” e “Coco Chanel” seguem o estilo de “Ganja Burn”, reforçando a ideia do formato espiral. “Coco Chanel” traz a participação de Foxy Brown, sendo o melhor feat do álbum e reforçando a mensagem que Nicki quer trazer, além de seu respeito por suas antecessoras, como a própria Foxy. “Inspirations Outro” reforça a sonoridade que antecede e abre caminho para “FEFE” – apesar da polêmica participação de 6ix9ine, é um encerramento bem posicionado sonoramente no álbum.


Nós realmente precisamos de rappers como a Nicki Minaj. Negar que o 'Queen' é um ótimo álbum é aceitar a predominância dos homens na cena e o papel da mídia, que reforça essa posição de poder. Ao longo do tempo paramos de perceber que Nicki é a ponte indispensável entre as lendas do hip hop e a nova geração de artistas que estão desbravando o mundo do rap. Nicki não teria chegado aqui se Lil’ Kim e Foxy Brown não tivessem batalhado pelos seus lugares lá atrás. Sem Nicki, as artistas da atualidade cairiam ainda mais no esquecimento, se prestando ao papel de hit maker que some após dois anos, como a Iggy Azalea.

E isso não significa que essas artistas não conseguem fazer sucesso por si só exclusivamente por falta de talento. Pelo contrário, a maioria está produzindo conteúdo de muita qualidade. Mas a questão é que, ainda hoje, o mercado não está preparado para as mulheres na música. Principalmente nos segmentos em que os homens mais predominam em número e notoriedade.

Nem a própria Nicki consegue se salvar dos constantes ataques midiáticos, que enxergam na sua figura o fardo de carregar o trono de rainha do rap. Ela está sempre sendo alvo das expectativas musicais, estéticas e comportamentais do ambiente musical, tanto por ser um elo entre o passado e o presente do chamado rap feminino, quanto por conseguir imperar por tanto tempo nessa posição com qualidade e resistência.

E, assim, discutimos o segundo aspecto: a mídia realmente precisa de Nicki Minaj para criticar e fomentar fofocas. Nenhuma mulher inserida no meio do rap conseguiria fazer todo esse alvoroço, simplesmente porque Nicki resiste, e vem resistindo desde o início de sua carreira. Cardi B não estaria fazendo tanto sucesso se Nicki não tivesse feito sucesso, e isso é inegável, é questão de mercado, não apenas de treta entre famosas. 

O que Nicki cobra em 'Queen' é justamente esse reconhecimento. O respeito que a nova geração deve a ela, por ter resistido e começado em uma época de praticamente hiato, quando se fala em mulheres no hip hop. Nicki reinaugurou a cena feminina, e não chegou, lançou um hit e foi embora. Persistiu, fez seu trabalho, e abriu caminho para as próximas.


Todas essas artistas enfrentam o machismo na música, são testadas constantemente e muitos duvidam de sua capacidade artística. São várias as comparações entre seu talento e sua aparência ou atitude. As associações dessas artistas com os homens da cena são muito contestadas, como se elas estivessem fazendo sucesso por causa deles. E Nicki enfrentou tudo isso.

Nós precisamos de Nicki tanto pela sua própria música quanto pela música das próximas mulheres. Precisamos de artistas que resistam a esse mercado, que façam sua música e enfrentem as expectativas. A gente acha que está melhorando, mas a verdade é que pouquíssima gente realmente procura ouvir as mulheres no rap.

Atualmente parece que só existe a Nicki ou a Cardi B, justamente porque Cardi chegou sentando na janelinha do bonde que Nicki vem dirigindo. Inegavelmente inspirada por ela e agindo como se isso fosse mentira, Cardi não estourou à toa. A sua música lembra a Nicki, que já se tornou uma grande referência. Devíamos ficar felizes que outra mulher conseguiu estourar, mas desde já ficamos aflitos, porque não sabemos se ela vai continuar nessa posição. Ou seja, Cardi acabou de chegar, tem ótimas músicas, mas não dá para fazer uma comparação justa entre ela e Nicki.


Nicki está lutando pelo seu trabalho desde o início, encontrou algumas portas abertas, mas teve que abrir muitas outras. É uma artista que vem se aperfeiçoando, mostrando trabalhos que seguem uma lógica de qualidade e evolução. Cardi ainda não tem uma história, está no ponto de partida jogando os dados enquanto Nicki já zerou o game.

Isso não significa que Nicki é melhor que Cardi ou vice-versa. É uma comparação impossível, as duas estão em pontos muito diferentes de suas carreiras. E é por isso que Nicki reclama seu trono. Não por ser melhor ou por ter chegado antes, mas por ter feito, por meio de seu trabalho, outras artistas como a Cardi alcançarem o sucesso. É uma questão de trajetória e reconhecimento, que vai além do rap game.

Hoje em dia, o tal game desponta sobre a competição que envolve likes, visualizações, dinheiro e visibilidade. As mulheres não são protegidas disso. Faz parte do momento em que o rap se encontra, como sempre fez, mesmo que a disputa fosse sobre outros aspectos, ou acabassem em sangue. Enquanto render mais hype e música boa para as duas artistas, deixemos os dados rolarem enquanto aumentamos o volume.