Como o trap realmente começou: Um resumo do que você precisa saber antes de achar que sabe de alguma coisa


Quando falamos sobre a melhor época do rap, inevitavelmente surgem diversos coroas que pirraçam com o trap, pirralhos que descobriram o gênero literalmente no ano passado e pessoas desempregadas que gostam de dar palpites sobre música, como eu, inconscientemente associamos à década de noventa. Talvez por ter sido a época onde o hip-hop realmente começou a se desenvolver no mainstream ou talvez seja só uma questão de gosto individual, quem liga? 

Essa associação muitas vezes vem com a famosa ideia de "Costa Leste ou Oeste". A Golden Era foi marcada por lendas e clássicos, mas também por rivalidade e violência, tanto na West Coast quanto na East. Ambos fatores trouxeram invisibilidade para diversos outros movimentos artísticos que estavam acontecendo na época e, ao contrário do que muitos acham, a verdadeira revolução dentro do rap não aconteceu no Leste ou Oeste dos Estados Unidos, e sim no Sul. 

Outkast e Geto Boys: O Sul ganhando notoriedade

Southern Rap, Dirty South ou Third Coast, chame do que quiser. O importante é reconhecermos o impacto do rap sulista nos sub gêneros que surgiram na última década, sendo o trap o maior e mais popular deles no momento. Assim como nas aulas de história, precisamos relembrar o passado para ter uma compreensão melhor do que rola hoje em dia, e com o hip-hop é a mesma coisa. 

Em 1990, o grupo de Houston, Geto Boys, lançou o controverso álbum intitulado "Grip It! On That Other Level". Em destaque está "Do it Like A G.O.", a primeira faixa do projeto que é uma declaração raivosa a forma como o rap só era reconhecido se fosse feito por rappers de Nova York ou Los Angeles, além de mencionar os boicotes e burocracias das rádios populares que, na época, tocavam majoritariamente músicas de artistas brancos: “A costa leste não toca nossas músicas / Todo mundo sabe que [o hip-hop] começou em Nova York / Então deixa essa merda de ego terminar”. 


O álbum vendeu mais de 500 mil cópias, chegou no Top 20 da Billboard R&B/Hip-Hop e chamou atenção, não necessariamente de forma positiva, de um público fora do Sul devido às letras violentas e comentários criticando o hype da West e East Coast. 

Cinco anos após o lançamento de "Grip It! On That Level", Outkast seria vaiado no Source Awards em meio a rivalidade da costa Leste e Oeste após ganhar o prêmio de “Melhor Novo Grupo de Rap”, e Andre 3000 deixaria claro que “o Sul também tinha algo a dizer”. E ele estava absolutamente certo.

Apesar de que a invisibilidade do Southern Rap já fosse um tópico comentado com bastante revolta pelos Geto Boys e outros grupos, como "Quit Hatin The South" do UGK e "Dirty South" do Goodie Mob, o sucesso do Outkast foi além do que qualquer um esperava. Andre 3k e Big Boi faziam questão de deixar claro que suas raízes estavam concentradas no Sul, e não no Leste ou Oeste como todos os rappers mainstream da época. 

O álbum de estreia da duo, "Southernplayalisticadillacmuzik", foi lançado em 1994, vendeu mais de um milhão de cópias nos Estados Unidos e foi a verdadeira ascensão da cidade de Atlanta no mapa do hip-hop. Foi quando tudo mudou.


Nos últimos anos, o trap tomou conta do topo dos charts e se tornou um gênero mundialmente conhecido em um curto período de tempo. Começamos a ver vários rappers sulistas mencionando as incríveis boates de strip de Atlanta com várias dançarinas bundudas e DSTs, falando sobre suas vivências no tráfico ou sobre beber lean até parecer um deficiente mental, e todos esses tópicos que vemos em letras do trap mainstream. Mas na década de noventa essa popularidade da sonoridade e do lifestyle do Sul não era importante para a mídia. Ninguém parecia ligar, ninguém falava da Third Coast.

Quase ninguém fora do Sul ouvia o rap sulista porque ninguém de fora entendia (alguém lembra do quanto o Lil Wayne foi apedrejado pelo uso do auto-tune e letras "sem mensagem" no começo da carreira? Ele teve um impacto gigantesco na chegada do trap ao mainstream e na indústria da música em geral, mas isso já é tema para uma matéria diferente). Ninguém entendia o sotaque forte — que deu origem ao termo "mumbling rap" —, as gírias, as drogas (o uso recreativo da codeína surgiu lá), a violência, o racismo enraizado — o sul dos EUA foi a região que mais sofreu com a segregação nos anos 40 e até hoje há um histórico de racismo atrelado aos estados sulistas. Inclusive, durante esse período, os livros de história usados em escolas foram reescritos de forma errônea para parecerem mais favoráveis ao Sul após a Guerra da Secessão, basicamente manipulando crianças e adolescentes a acreditarem que a bandeira dos Estados Confederados é um símbolo patriótico, quando na verdade é extremamente racista. —, as referências e a influência fortíssima do blues e do gospel que nenhuma outra região dos Estados Unidos tinha (o flow dos rappers sulistas era muito mais melódico e ‘cantado’ devido a esse fator, assim como a forma como eles faziam os beats também era diferente).


O que os rappers do Sul faziam na época era muito além do que o público mainstream estava pronto para compreender e consumir, especialmente em uma era onde o hip-hop ainda mudava constantemente e era difícil saber onde pregar um ponto final no que era considerado rap ou não. O Dirty South era diferente, visionário, experimental e acima de tudo, era puro underground. 

Como e onde o trap surgiu

Após grupos como UGK e Outkast se tornarem os rostos do Sul no mainstream, quase tudo que rolava na Third Coast começou a se espalhar pelo resto do país. O Chopped & Screwed tomou uma magnitude imensa, o Miami Bass cavou sua própria cova e foi substituído pelo Crunk e o trap começou a ganhar uma abordagem mais precisa, separando mais ainda o Southern Rap em sub gêneros com suas próprias características, mesmo que ninguém chamasse de trap na época ou sequer percebesse tal separação ocorrendo ao longo dos anos.

A invisibilidade do Dirty South no hip-hop foi um dos grandes impulsionamentos na variedade musical que surgiu lá nos anos noventa, e o trap é basicamente uma mistura de três gêneros essenciais: Miami Bass, Crunk e Gangsta Rap. 

A Flórida tinha o Miami Bass, gênero caracterizado por instrumentais uptempo, presença de muitos graves (bass), poucos vocais e quase nenhum conteúdo lírico. Em outras palavras, não tinha "mensagem", era considerado "música de festa", com nada além da intenção de fazer as pessoas dançarem. 


Em Memphis e Atlanta o hype do momento era o Crunk. Resumidamente falando, é uma mistura de EDM com rap. Assim como o Miami Bass, o Crunk também é "música de festa", feito com o propósito de deixar a galera animada e dançante em eventos. Geralmente tem vocais estridentes, graves fortes e costuma ter versos bem repetitivos.



Já o Gangsta Rap não se concentrou exatamente em um lugar ou outro como ocorreu com o Miami Bass e o Crunk, mas sim em todo o Sul e foi causado por fatores sociopolíticos. Isso por que os estados sulistas eram uns dos mais violentos dos EUA na década de noventa, com grande número de assassinatos, pobreza e tráfico de drogas, e pela popularidade já existente do gênero no país inteiro com o sucesso do N.W.A na época. Além disso, o Sul era região norte-americana onde se concentrava a maior população de negros e latinos, o que gerava diversas rivalidades entre gangues, mas também foi um dos fatores que trouxe tanta diversidade à cena local.


Misture minorias, pobreza, guerra entre gangues, uma epidemia de opioides sendo iniciada, uma cena super experimental e underground e ignorada pelo resto do hip-hop, criminalidade, grande facilidade no tráfico — a série-documentário "Drugs Inc" mostra como as rodovias gigantes que ligam os principais centros do Texas facilitam a entrada de drogas de cartéis mexicanos nos estados do Sul —, e muitas, mas muitas festas e boates e boom! Você tem a fórmula básica que estava envolvida diretamente no processo de criação, adaptação e popularização do gênero no início da década de noventa.

Quando um gênero musical se torna popular, todo mundo quer saber a onde foi início, mas nem sempre o início é algo fácil de se definir. Diminuir o nascimento do trap dizendo que absolutamente tudo começou na cidade de Atlanta, significa ignorar o que rappers de Memphis faziam bem antes das coisas se tornarem menos abstratas. Significa, principalmente, ignorar o que DJ Paul e Juicy J faziam desde 1991 com o lançamento das demos tapes do Three Six Mafia

Por falar em Three Six Mafia, o álbum de estreia do grupo, "Mystic Stylez", lançado em 1995, serviu de blueprint para o que iria acontecer com o trap no começo dos anos 2000. É um dos projetos mais influentes não só do trap, como também de outros sub gêneros, como o Phonk e o Cloud Rap.

Como o gênero ganhou o nome de "trap"

Antes do trap ser chamado de trap, o trap já existia. Mas afinal, quem foram os responsáveis por nomear o gênero assim?

Todos nós já cansamos de saber que o rapper T.I recentemente engatou em seu complexo de Deus e necessidade de ser aceito pela molecada mais jovem, afirmando em uma entrevista que ele inventou o trap e que a partir de seu segundo álbum de estúdio, "Trap Muzik", lançado em 2003, que o gênero foi definido e batizado com o nome "trap". Não, cara, se acalma, você não inventou nada. 

Mas antes de explicar o motivo pelo qual os comentários do T.I são errados e precipitados, precisamos primeiro entender o significado da palavra. 

A palavra "trap" é uma gíria derivada de "traphouse" que, em português, podemos traduzir para algo parecido com "boca de fumo". Uma traphouse é um lugar (geralmente uma casa alugada em um bairro com pouquíssima segurança para evitar esparro) onde ocorre o preparo, consumo e vendas de drogas. Era uma forma mais simples e rápida para que os traficantes e usuários pudessem se comunicar e marcar a compra e venda de drogas. 

Ao contrário do que T.I pensa, o uso do termo "trap" ou "trapping" em letras de música e títulos de álbum não começou com ele. Em 1995 o grupo de Atlanta, Hard Boyz, já usava o termo "trap" para descrever o som deles e narrar o lifestyle de crime. Inclusive eles lançaram um álbum intitulado "Trapped In The Game" no mesmo ano. 


Um pouquinho antes do trampo do Hard Boyz, Kilo Ali já citava o trap em suas músicas no álbum "America Has A Problem: Cocaine", em meados de 1990. Dungeon Family e Ghetto Mafia também eram grupos que descreviam suas músicas como trap na década de noventa.

Em termos de levar o gênero com o nome de "trap" ao mainstream, o crédito também não é de T.I, até porque o "Trap Muzik" não atende a todas as características de produção do gênero, é muito mais Crunk do que trap. Gucci Mane e seu álbum de estreia, "Trap House" fez essa missão em 2006, assim como Jeezy no álbum "Thug Motivation 101" apenas um ano antes.




As características principais de produção de um beat de trap

A fórmula básica de um beat de trap consiste basicamente em hi-hats geralmente bem juntinhos, 808s, kicks altos, sintetizadores, snares bem perceptíveis e costuma ter o BPM entre 70 e 110. 


Enquanto na costa Oeste e Leste a cena se concentrava centralmente no uso do Boss SP303 (por exemplo, J Dilla e Madlib) para gerar samples e basear o beat em cima, no Sul a preferência era o TR-808 Roland ("caixa de ritmos programável"), equipamento muito mais completo lançado no fim da década de oitenta e que os rappers de Memphis usavam para acrescentar os graves (808s drums) nos beats.

Com a popularidade do Chopped & Screwed deixando o rap mais lento, uma das lendas do Miami Bass e famoso pelo seu fast scratching e trampos em festas populares da Flórida, DJ Magic Mike, considerava complicado o método criado por DJ Screw, pois costumava tirar ou diminuir o volume da bassline das músicas originais que, antes do Chopped, eram uptempo e com foco de serem tocadas em boates. A solução de Mike para o problema? Simples: fazer beats mais lentos para poder continuar usando graves.. 

O uso de sintetizadores já é um pouco mais antiga. Em 1979 o lançamento do Yamaha DX7 foi algo que mexeu com a forma de se fazer música no geral, independente do gênero. Desde Whitney Houston até Mystikal, todo mundo utilizava. 

A novidade não foi a presença dos sintetizadores em músicas, mas sim na forma que ele foi usado no início dos anos 90, trazendo uma atmosfera muito mais dark e densa com os outros detalhes de produção que, por exemplo, Marvin Gaye não usava, como uma caralhada de 808s e letras sobre vender drogas por cima. 




Por fim, assim como todo gênero que surge, é difícil apontar um ou dois nomes das pessoas responsáveis por fazer ele acontecer. É difícil dizer “ah, foi na rua de tal cidade com fulaninho de tal vendendo crack que tudo começou". Gêneros e sub gêneros no início são como um bebê recém nascido: pessoas, objetos, acontecimentos e tudo ao redor dele irão formar a personalidade daquela criança alguns anos depois. Então por que reduzir um movimento artístico tão brilhante à uma cidade ou outra, quando Dirty South inteiro foi responsável por molda-lo?

Escrito por @samariusk