A influência do Gorillaz no rap transcende a produção de conteúdo alternativo



O Gorillaz foi criado em 1998 pelo músico Damon Albarn e por Jamie Hewlett, o desenhista que deu vida à incrível arte visual do projeto. Contrariando a tendência MTV dos anos 2000, os caras vieram com uma proposta totalmente experimental. Além da ideia de se lançar por meio de uma banda virtual, cada música soava diferente. Seus sons transitavam entre vários gêneros, o que desafiou a galera que costumava se taxar como fã de apenas um estilo ou de uma única banda. Tentando entender como isso tudo influenciou a cena alternativa e até mesmo o rap, a V!$H Midia mergulhou no mundo de 2-D, Murdoc, Noodle e Russel para tentar descobrir como é que rolou toda essa parada. Pega a visão que a história vai começar e provavelmente você está incluído nela.



Acende mais um, escreve um verso. Inflama outro, mais um rabisco. E nada. Bloqueio criativo o nome, né? Pensa ele. O que eu vou fazer de novo? O que eu tô criando é realmente diferente? Vai atrair algum público? Ao mesmo tempo, isso me representa? Ou é apenas mais do mesmo. Caixinhas etiquetadas de sons. Marcas. Timbres. Estilos. Ah, eu vou é fumar mais um. 

Pô, esse cara vai ficar repetindo a mesma coisa em todas as faixas? Nó, mano, não aguento mais ouvir esse brother fazendo tudo da mesma forma em todos os trabalhos. Mas ó, aquele ali inovou, hein? Puta que pariu, nunca tinha ouvido isso. Genial. Ué, esse artista não fazia só plug? Agora tá fazendo trap? Eu hein, tá parecendo os caras que usam Adidas com Nike. Tá igual aos manos que reclamam de quem usa Adidas com Nike. Será que é isso mesmo que eu quero ouvir?

Velho, sobre o que eu vou escrever hoje? Influências do rap no Brasil? As melhores colaborações da semana? Fudeu. Não tem nada diferente na cena. Tá tudo diferente na cena. Não tenho mais pauta. Acho que tá na hora de parar de escrever. Pera, que isso aqui? Caraaaaalho, que som massa. É isto. 


E assim começa mais um dia na vida de um rapper. Ou de quem ouve rap. Pode ser também mais uma situação no dia a dia de quem escreve sobre rap. Bom, eu me encaixo na última opção. E vou falar pra vocês um negócio, viu. É difícil demais escrever só pelo ponto de vista observador. Não conheço a fundo o processo de criação e produção musical. Não escuto música sempre só por ouvir mesmo e pá. No fundo toda vez bate aquela treta no inferno cerebral da pessoa que acha que tem que opinar sobre música: pô, mano, que que pega? 

Mas fazer o que, né. Tamo aqui pra falar de música mesmo, quem gostar bate palma, quem não gostar reclama com meu eu lírico. Só que meu eu lírico sou eu mesma, porra. Que saco. Vou acionar o que seria meu nome de rapper. Lil Lime. Vários aí com Lil no nome artístico, eu boto fé. Mas meu nome me permite usar isso, beleza? Valeu. Ninguém reclama comigo não, reclama com a Lil Lime, que nem existe. 

Estaria fugindo da raia ou botando lenha na fogueira? Quem vai dizer. O que pega é que eu não consigo fazer isso. Lil Lime pode ser um alter ego, mas todo mundo que conhece sabe quem estaria por trás disso. Como é que pegou pro Gorillaz, então? Os caras montam uma banda virtual, fazem uns desenhos daquele naipe, metem a sonoridade que querem e saem isentos? Porra. Pode crer, mano. Queria ter tido essa ideia antes, viu. 

O rapper lá em cima se pá pensou que queria ter tido essa ideia também. O cara que escuta rap nem pensou muito, achou incrível e começou a ouvir tudo e querer mais e mais. E cobrar mais e mais. Cadê o disco novo do Gorillaz? Por que os outros artistas não inovam assim? Não gosto do jeito que o Gorillaz trabalha, nada com nada, vei. E a pessoa que escreve sobre rap não sabe nem por onde começar a se aventurar por essa realidade alternativa, cibernética, geração millenium bla bla bla

Como atingir o ponto de vista do rapper, do ouvinte e do crítico de ouvido? Sei lá, mano. Mas o Gorillaz conseguiu criar um monte de pergunta na cabeça de todos eles. Sem nem espaço pra resposta. Vai lá checar com o Murdoc porque ele não quis fazer tal som de tal jeito. Manda tweet pro 2-D falando pra deixar de ser otário e escrever um álbum novo logo. Troca ideia com a Noodle sobre como ela consegue tocar tão bem. E aí, cê vai trombar o Russel pra fazer um feat, mano?



Cê tá doido. E se tiver mesmo, até que isso pode acontecer, na real. Mas enfim. Chega de papo, vamo falar de música. O que o Gorillaz fez se baseou em uma estratégia genial de mercado. Sem margem para definições, o Damon Albarn, criador do Blur, se juntou ao cartunista Jamie Hewlett e tiveram a ideia de criar uma banda virtual. Cada personagem tinha sua história, e a relação entre eles alterava a dinâmica da banda. 

Chama o Snoop Dogg numa faixa, o Lou Reed em outra. Taca eletrônica, trip-hop, brit-pop, rock, bota tudo e vê no que dá. Não foi exatamente assim. A geração MTV não estava preparada para ouvir tudo ao mesmo tempo, em uma época que categorias eram tão importantes. Se definir. "Eu sou emo! Eu adoro pop. Pop é o caralho, rock porra!!". E vai falar que hoje todas as musicalidades são assim, encaixotadinhas, em suas respectivas marcas, esperando o sinal de largada para apostar corrida em um Top 100 por aí? 

Na real, nem naquela época era assim. Mas o Gorillaz transcendeu as apostas. Enquanto o público começava a se identificar e se rotular, os caras apostaram em um não-rótulo, em uma não-banda. Mas apenas no sentido metafórico, já que é uma puta duma banda. Porém, não tô aqui hoje pra falar tanto da trajetória deles, e sim de sua influência no rap "alternativo". 

Dá pra falar da influência do Gorillaz em muitos gêneros, já que sua principal característica é o experimentalismo com vários deles. O lance da banda virtual já não era uma grande novidade em 1998, quando eles estrearam. Mas a forma como representaram isso despontou na genialidade de reunir as propostas musicais, artísticas e políticas em um som autêntico, capaz de atrair diferentes fãs de todos os espectros musicais. 

É essa a principal característica que vejo no rap alternativo. Se desprender das amarras mercadológicas e inovar de modo que reúna as ideias e os estilos próprios em um sentido novo, desafiador tanto para o músico, quanto para o ouvinte, e também para o ouvinte-escritor. Não é como se os artistas que emergiram dessa fase começassem a juntar tudo do nada e sem propósito. Almejaram o desconforto de sair do ninho, da marca, do selo, da gravadora, e fazer o seu. 

Dessa onda despontaram novos sub-gêneros e experimentações. Vimos grandes artistas acostumados a fazer um tipo de som inovando, ou pelo menos flertando com técnicas que quebram as características peculiares de cada musicalidade. Ao mesmo tempo, assistimos grandes nomes ocupar nossas cabeças com suas sonoridades diferenciadas, como MF DOOM, Quasimoto e vamos adiante com Frank Ocean, Tyler, The Creator, Vince Staples e BROCKHAMPTON.


Não estou dizendo que todos foram diretamente influenciados por Gorillaz, ou até que se encaixam no tal rap alternativo. São exemplos de artistas que colheram os frutos da experimentação, mixaram suas propostas e se libertaram ao longo de suas carreiras fazendo simplesmente o que queriam fazer, algo que deriva da quebra da geração MTV impulsionada por Gorillaz. 

É claro que é uma tendência natural da música se renovar ao longo do tempo, até mesmo por conta da globalização, que permitiu que os diversos estilos se encontrassem na arte de seus percursores e dessem início ao grande despertar sonoro de interações. Porém, a quebra de categorias e rótulos se deu estrategicamente mais visível com o Gorillaz, que foi uma das bandas pioneiras em todos os sentidos de experimentação, criatividade e identidade musical e visual. 

A importância do audiovisual certamente ganhou mais força com a variedade de situações vividas pelos integrantes da banda virtual ao som de uma trilha sonora multifacetada e rica em experimentos e criatividade. Hoje em dia, o hip hop domina o audiovisual com produções incríveis que extrapolam a ideia do mano centralizado jogando dinheiro pra cima carregando seus cordões de ouro. Até se for essa a cena principal do clipe, tem uma iluminação diferente, algum efeito inesperado ou uma quebra de expectativa. 

A influência do Gorillaz é válida em toda a cena alternativa, mas, no rap, transcendeu a produção desse tipo de conteúdo mais independente e engajado. A arte, o estilo indefinido e a aventura de se desafiar musicalmente aterrissaram nos estúdios, muitas vezes pessoais, não ligados a uma gravadora de renome. Na verdade, a influência real no rap alternativo parte do grupo californiano Hieroglyphics.  

Hieroglyphics, 1998

Del the Funky Homosapien, Pep Love, Casual e o grupo Souls of Mischief marcaram uma nova era underground nos Estados Unidos nos anos 90. É daí que tiramos uma aproximação de definição do que seria o rap alternativo: uma resposta à segmentação do rap pela indústria musical, que usufruiu da dita globalização para transformar o hip hop em um dos grandes alvos do mercado, mais um produto na prateleira e nos ouvidos. Ou seja, o rap "alternativo" seria um resgate da potência do hip hop, que por si só envolve uma grande mistura de técnicas e estilos, junto a um impulso revolucionário artístico, que se renova com cada vez mais destaque à criatividade em todas as artes que envolvem o rap. 

Assim, música, grafite, pixo, discurso, manifestos políticos, moda, identidade visual e comportamental tomaram as ruas pelos portões de baixo. Del foi um dos colaboradores do grande hit do Gorillaz, 'Clint Eastwood'. E muito rapper por aí podia não tê-lo conhecido se o Gorillaz não tivesse alcançado tantos ouvintes com essa metamorfose em tempo real e digital, segmentada na antipatia de uma desconstrução genérica de sonoridades.


A influência ressurgiu ao longo de cada novo grupo ou artista que chegou desafiando o produto que vendia bem, se agarrando aos seus apelos interiores e urgindo em arte um despertar misturado de vivência, criação e energia. Gorillaz pode ter sido uma das primeiras bandas que te fez perguntar "Pô, mas qual o gênero que eles tocam?" e você respondeu: "O gênero do Gorillaz é Gorillaz". Assim como Frank Ocean é Frank Ocean. Assim como MF DOOM é MF DOOM. Assim como, no Brasil, começamos a perceber que Sound Food Gang é... Sound Food Gang. 

Pra quem ainda não ouviu, Sound Food Gang é um selo de Jundiaí, composto por grandes artistas da nova cena do rap que desponta no Brasil há algum tempo. Nill, Yung Buda, Mano Will, Chábazz, Chinv DJ Buck ao lado do querido Adalberto lançaram nesse ano a 'Foodstation', uma das mixtapes que mais ilustram o que quero dizer sobre essa influência conjunta tanto do rap alternativo como do Gorillaz em si.

Os caras se juntaram, cada um com seu estilo, e fizeram um projeto uno, que ficou incrível. E uma de suas principais marcas é justamente marca nenhuma. Estão fazendo seu som, nutridos das influências de cada um, alimentando as sonoridades que criam sozinhos e em conjunto, e sustentando tudo em sua própria gravadora. "A melhor gravadora que eu assinei foi a minha", grita niLL em 'F.F.R.2'.




E não paramos por aí. Temos Victor Xamã, Makalister, Rodrigo Ogi, Matheus Coringa, e, não podia deixar de citar minha cena, pois direto de Belo Horizonte, ou de Nova Lima no caso do Delatorvi,  The Ogoin, PESSA e NIHIL estão mostrando que o rap está resistindo cada vez mais perto de mim, e pode estar aí, bem do seu lado. Basta explorar e perceber a variedade de conteúdos que desafiam os fones cansados daquela mesma beat junto daquele mesmo refrão que parece feito pra galera dançar na balada no fim de semana e fica por isso mesmo. 

A influência de uma banda, como o Gorillaz, ou de um estilo, como o rap alternativo, está além dos artistas. Está em você, que ouve, elogia, critica, sustenta o ganha pão de quem tá fazendo música. Está em mim, que escrevo sobre o que ouço como se soubesse mesmo de algo além do que meu próprio ouvido conta. A influência transcende a produção. Está em todos nós, compositores e consumidores de música. O rapper, o ouvinte e a escritora então se trombam num bar... e o resto é história. Bora acender mais um.