Como Atlanta trouxe uma perspectiva honesta sobre o hip-hop atual


Visualize um museu gigantesco da Coca-Cola ou o berço do trap. Se a capital do estado norte-americano da Geórgia não lhe vem à cabeça imediatamente, talvez a aclamada série de televisão ‘Atlanta’ esclareça o cenário em sua mente. 

Em meados de 2016, Donald Glover criou, escreveu, produziu, estrelou e até mesmo dirigiu a série ao lado de seu antigo colega de trabalho, Hiro Murai. Com apenas duas temporadas e vinte e um episódios, Atlanta já recebeu dois prêmios Emmy e até um Globo de Ouro de melhor série de comédia. Por mais que seja possível escrever centenas de parágrafos sobre o quanto o seriado é incrível, é necessário brilhar uma luz em um dos aspectos mais importantes: a forma como Atlanta trouxe uma perspectiva brutalmente honesta sobre como o rap se desenvolve nos dias de hoje. 

Em uma entrevista à New York Magazine, Glover disse queria mostrar para as pessoas brancas que elas não sabem tudo sobre a cultura negra e ainda descreveu a série como "Twin Peaks com rappers". 

Earnest Marks (Donald Glover) é um jovem financeiramente fodido que largou a universidade por motivos misteriosos e é basicamente um sem-teto, se sustentando em um emprego miserável e morando com Vanessa Keefer (Zazie Beetz), a mãe de sua filhinha Lottie. Após descobrir que seu primo Alfred Miles (Bryan Tyree Henry) está se tornando um rapper popular na internet com o nome de "Paper Boi" e mora junto com seu amigo Darius (Lakeith Stanfield), Earn decide gerenciar a carreira dele.

Logo de início fica óbvio que a intenção de Earn não é ser meramente um bom parente e dar apoio ao primo, e sim, ganhar dinheiro. Isso pode parecer egoísta até descobrirmos que Alfred não faz parte do grupinho de rappers apaixonados pela cultura hip-hop com muito a dizer através de uma mensagem construtiva em versos complexos. Na verdade, a primeira aparição de Al na série é em um clipe ao lado muito dinheiro, bundas grandes e armas — como um típico vídeo-clipe de trap que temos hoje em dia — além da música inteira ser basicamente a repetição de “Paper Boi, Paper Boi, all about that paper, boy”. Assim como Earn, Paper Boi entrou no rap game com um único objetivo: ganhar dinheiro. 


No decorrer da história Paper Boi descobre que seu plano de ganhar a vida fazendo rap é muito mais difícil do que parece. Mesmo com sua popularidade crescente na internet, Alfred ainda precisa traficar para pagar suas contas — o que nos leva a reflexão da concepção errada de que todo rapper se torna automaticamente rico depois de estourar com um álbum ou clipe — e na verdade, a “fama” só serviu para colocar um alvo em suas costas. Como por exemplo, quando ele é preso após um tiroteio em um estacionamento e seu rosto aparece no noticiário, deixando-o completamente paranoico. 

No episódio do Justin Bieber é mostrado com clareza os estereótipos que são atribuídos a rappers como Paper Boi. Eles são babacas, agressivos, mal educados e violentos enquanto artistas pop brancos — apesar de que na série Bieber é negro — são apenas jovens confusos cometendo erros pois há muita pressão em crescer em frente às câmeras. Por isso eles podem ser otários, mijar em baldes no meio de um restaurante, usar a n-word e no final o público irá perdoar e os colocará no topo das paradas novamente, o que foi exatamente o que aconteceu com Justin Bieber na vida real alguns anos atrás. 

Já em outro episódio, um dos atendentes do restaurante onde Darius e Al param para comer asinhas de frango diz o quanto é fã de Paper Boi, pois ele atira em pessoas na rua e isso faz dele um rapper de verdade igual os da velha guarda, como Mobb Deep e Biggie. Por fim, o funcionário diz que não curte “essas merdas tipo Fetty Wap”, sendo que as músicas de Paper Boi são muito mais similares às de Fetty Wap do que às de qualquer rapper mainstream da década de noventa. Com o trap em ascensão e dominando os charts, rappers são mais prezados pelo seu nível de ‘gangsta’ do que pela música que eles fazem, o que leva muitos “fãs” a gravarem vídeos da porrada comendo entre rappers com a única intenção de gerar mais briga ainda. 


Por falar em sensacionalismo na internet, no quarto episódio conhecemos Zan, um cara completamente inconveniente que ganha dinheiro fazendo click baits e causando tretas com rappers na internet com a intenção de autopromoção. Zan é basicamente a personificação de todos os youtubers imbecis com milhões de views em vídeos inúteis ou donos de mídias de gossip  o The Shade Room, por exemplo, é um site de fofoca sobre cantores de R&B, rappers, sub celebridades e estrelas de reality shows e tem literalmente mais de 14 milhões de seguidores no Instagram, então sim, há pessoas que realmente consomem esse tipo de merda  e memes. 

As cenas citadas acima são somente alguns breves exemplos de situações realistas que acontecem tanto com os rappers em si quanto com o público de rap nos dias de hoje. Por mais que a série tenha inúmeros outros fatores relevantes que a tornam única, essa abordagem escancarada da forma como consumimos o rap atualmente é completamente verídica. 

A indústria musical teve que mudar drasticamente para se adequar à era da internet — inclusive ao longo da série vemos constantes close ups nos celulares dos personagens. Não consumimos, compramos, ouvimos, vendemos ou experimentamos música na mesma forma que antes. Álbuns físicos foram substituídos por plataformas de streaming, a RIAA agora contabiliza views de clipes do Youtube na hora de certificar singles e as redes sociais são as maiores ferramentas de marketing e divulgação. É óbvio que o rap assim como todo gênero musical também teve que se adaptar às mudanças. Uma das maiores diferenças de Atlanta para outras séries que abordam o hip-hop — como por exemplo, Empire — é que Atlanta mostra constantemente a dinâmica entre o produto (rapper) e o consumidor (público) e todos os fatores sociopolíticos que vem atrelado a isso de forma tão honesta que seja até ser creepy às vezes, como no episódio do “transracial”, uma nítida sátira a Rachel Donazel, uma mulher branca que foi em milhares de programas de TV afirmando ser afro-americana.


Certo, mas como conseguiram envolver todos esses aspectos de uma maneira que seja completamente hilário mas ao mesmo tempo dramático? É simples: Atlanta usa o contraste entre o surrealismo e o realismo, o comum e o absurdo. A divergência de cenas surreais e fantasiosas — como no primeiro episódio onde aparece literalmente do nada um cara fazendo um sanduba de Nutella no ônibus — com as críticas sociais feitas ao longo de toda a série não só gera uma espécie de humor ácido e inteligente como também nos deixa com a constante dúvida do que é real e do que é mera alucinação dos personagens. Nos faz questionar se o que está acontecendo é imaginação ou se há alguma explicação lógica ou referência escondida nessas cenas. 

Além de levantar bandeiras importantíssimas sobre pautas que não são tão discutidas dentro do rap, como a comunidade LGBTQIA+, apropriação cultural, homofobia, colorismo, masculinidade tóxica etc., Atlanta ainda consegue acertar em cheio na hora de retratar as dificuldades financeiras e emocionais que a maioria dos millennials enfrentam. 

Ao contrário do que Darius diz no pilot, o rap não está morto, ele só é consumido de uma nova forma.

Coluna por @samarikush
Correção e revisão por @mafravillainy